Um tipo inesquecível

28-11-2011 21:24
O Sr. Carlos apareceu no meu ginásio, por volta de há uns 9 anos. Treinava num ginásio de um amigo dele, e dizendo não traí-lo, treinava lá e vinha tomar o batido comigo. Tinha 63 anos, totalmente careca, robusto e todo vestido de preto. A expressão dele era de um terno/duro/doce, como se possível fosse reunir tudo isto numa só face, em simultâneo. Mas era assim. Treinava 3 vezes na semana (sem baldar nenhum grupo muscular) e fazia agachamento e supino com 100 Kg.


Foi com ele que aprendi o grande amor de Pedro e Inês de Castro, numa narrativa tal que parecia ele estar perante de um júri, a justificar as atrocidades cometidas em razão do amor. Ficou colado na minha memória...
Um dia convidou-me para jantar em sua casa. Sua esposa me recebeu com a mais bonita e farta mesa de comida que já vi, e ofereceu-me um livro de contos de sua autoria, com a dedicatória mais bonita que já me fizeram.

Nunca mais vi o Sr. Carlos, desde então, a não ser num breve momento na rua, eu de carro a chamá-lo pela janela do carona, ao qual ele se aproximou e, sem graça repetia:
- Gosto muito de si,
- Gosto muito de si.

O Sr. Carlos faleceu alguns meses depois, de seguidos ataques cardíacos, dos quais ele se recompunha por minutos, um atrás do outro, sem se deixar vencer, naquela sua imensa fortaleza. Mas a natureza é assim. Venceu. Vence sempre.

Em posterior visita ao meu ginásio, sua esposa proporcionou-me a honra de poder usar algumas roupas de treino que foram dele. E explicou-me tudo:

Sua ausência, após o que ele considerava um auge, era para salvaguardar o espírito, o sentimento e a imagem. Como que estancar o tempo. Lembro de como ele falava do grande Charles Atlas (este precursor de toda a Cultura Física), como se ele existisse hoje, vivo, actualizado. Ele não queria conviver com o declínio de nada que ele amasse. Acho que era uma espécie de respeito adicional; Ou auto protecção, sei lá...

Guardando as proporções, acho que devíamos perpetuar os auges de todos, principalmente numa actividade tão efémera como esta , de construir e moldar o corpo. Ao invés de frases como “Teu tempo já passou”, “Fulano já era” ou “Tens visto fulano? Está uma merda!”, deveríamos prestar mais atenção nas realizações. Não se pode apagar realizações. Somente admirá-las por terem sido ou por serem. Apagá-las ou esquecê-las, além de feio, seria inadequado e injusto, mesmo porque ao ser assim já estaríamos a assinar a nossa própria sentença...

Além do mais, tenho saudades do Sr. Carlos. E sei que ele olha por mim...